terça-feira, 24 de março de 2015


Morreu Herberto Hélder. Morreu hoje, soube-o enquanto trabalhava. Uma figura marcante em muitos aspectos. Marcante para mim, pela sua vida atormentada, de viandante de esquina, pela sua escrita quase que enraivecida, torcida, expressava-se como os livros fossem uma tela viva, ora ensaguentados, ora numa sublime aproximação do divino.
A vida levou-o a fazer de tudo. Sobreviveu, por vezes, como pôde. Fazia a vida de um operário para se vingar no papel, escrevinhando nele palavras que nos permanecerão. É essa a sina dos que morrendo, não morrem. Deixam a sua marcam indelével num mundo por esses, às vezes, tão indesejado. A pungência e quase belicismo das suas palavras é uma nota dominante. Mas marcadas, também, por uma suavidade áspera, que se lêem com um ardor cá dentro. Recusou-se a receber o Prémio Pessoa, dizendo "Não digam a ninguém, e dêem o prémio a outro."
A nossa vida é um mar de coisas. De cenas. De epílogos e prólogos. De preâmbulos e desenlaces. De princípios e de fins. Às vezes num compasso lento de um lânguido metrónomo, às vezes na voracidade de um tempo que corre sem barreiras, sem limites de velocidade. A vida de Herberto Hélder foi vivida em cada experiência que teve. A sofreguidão com que os seus versos se multiplicam, reflectem essa perturbação constante do que viveu; cada uma das suas palavras amontoam, por vezes com violência, as coisas passadas, vividas, com mais ou menos paixão, as coisas que se sentiram num determinado momento, cuja causalidade se perde num emaranhado de emoções fortes que todo o grande escritor deve ter.
Foi amigo de Luiz Pacheco (outro nome que me marcou muitíssimo - a sua escrita era despudorada, desbragada, tão intensa quanto onírica, tão rude e indelicada, malcriada, mesmo, quanto afrontadora dos nossos pequeninos egos) e Mário Cesariny (este dispensa quaisquer apresentações, espero, e que também foi, e é, meu companheiro de viagens literárias) num grupo que ficou conhecido como Grupo do Gelo (do Café Gelo, no Rossio), outras duas figuras incontornáveis no panorama literário nacional.
Morreu Herberto Hélder. Há figuras que não deixam nada para trás. Esta deixou. Resta-me, somente, ir buscar os livros dele novamente, e relê-lo. E isso é uma coisa magnífica. Ler os versos de quem passou, mas que estará quando muitos de nós já cá não estivermos.

(Deixo um dos poemas dele que mais me marcou)

"Não sei como dizer-te que a minha voz te procura
e a atenção começa a florir, quando sucede a noite
esplêndida e casta.
Não sei o que quer dizer, quando longamente teus pulsos
se enchem de um brilho precioso
e estremeces como um pensamento chegado. quando,
iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado
pelo pressentir de um tempo distante,
e na terra crescida os homens entoam a vindima
- eu não sei como dizer-te que cem ideias,
dentro de mim, te procuram.

Quando as folhas de melancolia arrefecem com astros
ao lado do espaço
e o coração é uma semente inventada
em seu ascético escuro e em turbilhão de um dia,
tu arrebatas os caminhos da minha solidão
como se toda a minha cara ardesse pousada na noite.
- E então não sei o que dizer
junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio.
Quando as crianças acordam nas luas espantadas
que às vezes se despenham no meio do tempo
- não sei como dizer-te que a pureza,
dentro de mim, te procura.

Durante a primavera inteira aprendo
os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto
correr do espaço
e penso que vou dizer algo cheio de razão,
mas quando a sombra cai da curva sôfrega
dos meus lábios, sinto que me falta
um girassol, uma pedra, uma ave qualquer
coisa extraordinária.
Porque não sei como dizer-te sem milagres
que dentro de mim é o sol, o fruto,
a criança, a água, o leite, a mãe,
o amor,

que te procuram."

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