Estava quase a dormir. Estava quase. Mas a consciência pesava. Pensava no que se passou hoje, e que foi uma ocupação da mente durante todo o dia. Queria escrever qualquer coisa sobre aqueles actos vis, desprezíveis, sórdidos, que ocorreram hoje em Paris. Que consternou tudo e tod@s. E com toda a razão. Queria marcar território dos que acham que a Liberdade é uma coisa que se deve render e subjugar a religiões, políticas, tendências. Ontem tiveram a resposta. Amanhã terão mais. E depois, e depois, e depois. E, de mim, enquanto não me doam os ossos, o corpo, a alma e a voz, não terão em mim adversário fácil. Durante muitos anos da minha vida, lutei activamente contra todo o tipo de preconceitos. E lutar contra preconceitos, é lutar pela própria Liberdade. Assim me fiz crer. Lutei com movimentos LGBT, com movimentos anti-racistas, com movimentos anti-fascistas, lutei até mais não, para que os, não "sem-voz", mas cuja voz era pouco mais que um sussurro numa sociedade empedernida, velha e caduca, para que esses pudessem gozar de uma Liberdade que me era providenciada de bom grado, e fácil, mas que a el@s era arrancada a ferros, vendida por milhões, e, às vezes, negada, sem justificação. Para mim, a Liberdade é um direito. E é um dever. Um dever daqueles que a têm de lutar por ela até ao último fôlego. Aquilo que aquela Gente, nuns escritórios atarracados, em Paris, hoje, fizeram por todos nós. Contra a intolerância, contra a arrogância da imposição unilateral sobre o que cada um de nós pode ou não pode pensar, escrever, pintar, fotografar, afirmar, enfim. Morreram pela Liberdade. Morreram por tod@s nós. É esse dever incomensurável que nós devemos honrar, essa imensa tarefa de lutar para que tod@s possamos pensar, escrever, pintar, fotografar, dizer, o que quisermos, nunca ofendendo a Liberdade d@s outr@s, mas desafiando os dogmas, desafiando o estabelecido. Assim se conquistaram as mais simples Liberdades, assim se continuarão a conquistar. Nada pode justificar a barbárie de hoje. Nada. "Vingámos o profeta", disseram os energúmenos, enquanto baleavam inocentes, gente que apenas desafiava os dogmas. O que fizeram foi perpetuar a intolerância, a barbárie, o crime, o fascismo. Porcos. Há poucas coisas na vida pelas quais morreria de bom grado (acaso tal tivesse de acontecer, por razões várias); a minha família, uma pessoa a quem eu quero muito, mas não posso nomear, e a Liberdade. De tod@s nós. Daria a minha vida por estas coisas, sendo que a Liberdade é um campo vastíssimo, não quantificável, e que envolve muitas coisas, muitas lutas, muitos reveses, muitas vitórias, mas que nos garante, todos os dias, que possamos fazer as nossas escolhas em consciência, livremente, sem que nos peçam contas por isso. Aquela gentalha que hoje perpetrou aqueles crimes de ignomínia, não entende, sequer, o que estas palavras possam querer dizer. Encontram num fundamentalismo atávico as respostas que querem para perguntas que não fazem sentido. Como me espanta que em pleno século XXI se achem "pessoas" a quem uma bala no corpo de outrém faça mais sentido que o poder simples do pensamento. E pensar de inúmeros personagens da História, muçulmanos, cristãos, judeus, budistas, zoroartristas, etc., que mudaram o curso da mesma através de um livro, de uma observação plausível, de uma crença na ciência. Este medievalismo de pensamento que nos rodeia, esta falta de sentido nas coisas, é-me profundamente atroz. Tira-me o sono. Deixa-me perplexo e abismado. Devolve-me aos cismas que tive, e que tenho, perdurando neles a luta contra as intolerâncias, que tive. O sangue correrá até que ele corra nas veias do último Humano. Até que esta cegueira pare. Até que esta luta de idiotas cesse, para dar lugar a um diálogo de tolerância, de humanismo. Até lá, por muito que me custe dizê-lo, que abomino a violência, a truculência, até lá, a barricada tem que ter uma separação clara. Aqueles que defendem que eu possa escrever estas pobres e parcas linhas que escrevo, e aqueles que exultam o unilateralismo, o fundamentalismo e a barbárie como fontes. Eu estou, estarei, estarei sempre, de um só desses lados. Com tod@s os que me acompanharem, eu os acompanharei sem pestanejar.
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